terça-feira, 7 de novembro de 2017

Reforma trabalhista: quando explorar já não basta...






Por Emílio Emilio Gennari – Educador Popular

                                                                      
E-mail: epcursos@gmail.com
           

Há mais de um século sabemos que o salário representa uma pequena parcela do valor produzido pelo trabalho. Dos escritos de Marx aos nossos dias, a exploração ampliou suas formas, ganhou aliados no seio do operariado, seduziu milhões de empregados com prêmios ou simples elogios, transformou funcionários em feitores de si próprios e promete novos pesadelos. Ainda é cedo para visualizar os desdobramentos da precarização que ganha o amparo da lei a partir de 12 de novembro, quando a reforma trabalhista[1] começa a vigorar, mas as normas aprovadas apontam novos patamares de submissão da classe às necessidades empresariais.
           
Vamos começar a nossa análise pela possibilidade de os empregadores homologarem em suas dependências a rescisão dos contratos dos funcionários sem a presença do sindicato. A experiência prova que, na hora do acerto de contas, quanto menor o grau de instrução e de conhecimento das leis, maior a chance de que haja irregularidades não percebidas por quem acaba de ser demitido.
           
Na construção civil, por exemplo, não é raro que sejam descontados como faltas os dias em que o operário ficou em casa, a pedido da empresa, entre uma obra e outra. À primeira vista, o fato de não ter trabalhado, leva-o a acreditar que o desconto tem razão de ser. Então, como não assinar sem reservas as contas da rescisão de contrato? Por que procurar o sindicato se tudo parece estar certo? Ainda que isso ocorra e que as irregularidades venham à tona, quem se aventuraria a abrir um processo na justiça que, em caso de julgamento desfavorável, levaria a pagar custos processuais que podem superar os valores pleiteados?
           
Vale lembrar que, no total de processos em primeira instância, 52% das ações nas varas do trabalho dizem respeito justamente a problemas encontrados no pagamento de verbas rescisórias e que este volume guarda uma relação direta com as homologações que contam com algum tipo de assistência na hora de sua efetivação.[2] Possibilitar que o acerto de contas ocorra sem alguém que conhece as normas e não tem vínculos com a empresa, acaba promovendo o descumprimento sistemático dos direitos a serem pagos. A redução do número de ações no judiciário, tão cara aos autores da reforma, não se dará pelo cumprimento das leis e sim pela menor possibilidade de os trabalhadores perceberem que há algo errado no que eles vão receber. Sendo assim, quantos pagamentos corriqueiramente negados pelos empresários implicarão em menos alimentos, remédios, roupas, cuidados pessoais e familiares do demitido?
           
Os artigos da reforma trabalhista que se referem ao dano extrapatrimonial revelam a desigualdade de tratamento que os congressistas dispensaram a empresas e funcionários, além da intenção de amordaçar quem denuncia injustiças e abusos.[3] Pelas normas aprovadas, uma ação ou omissão que venha a ferir a imagem da empresa, a marca, o nome, o segredo empresarial e o sigilo da correspondência serão punidos com uma reparação em dinheiro de todos os danos materiais provocados por este ato. Diante da amplitude do enunciado, não é difícil imaginar a saia justa em que os sindicatos de trabalhadores terão que se movimentar sempre que optarem por encaminhar denúncias em seus informativos ou meios eletrônicos. À medida que não é possível fazer isso sem citar o nome da empresa e mencionar suas atividades, a possibilidade de terem que pagar indenizações pesadas tende a reduzir ainda mais o uso da comunicação como forma de pressão. A tendência é que o material coletado através das denúncias vindas da categoria chegue, no máximo, a compor um dossiê a ser entregue ao ministério público ou produza uma ação na justiça para cujo desfecho será difícil optar por instrumentos que saiam deste âmbito.
           
Em relação ao segredo industrial, nos deparamos com uma situação que seria cômica se não fosse trágica. Muitos regulamentos empresariais, que a reforma inclui nos temas para os quais o que é negociado vale mais do que consta na legislação, proíbem o trabalhador de fotografar as dependências da empresa e gravar conversas. Na quase totalidade dos casos, é impossível dizer que se trata de uma forma de proteger o “segredo industrial”, à medida que processos e maquinários são conhecidos de longa data e, a rigor, não apresentam segredo algum. Muitas vezes, a proibição visa apenas ocultar as discrepâncias entre as matérias-primas usadas, as normas vigentes e as características declaradas nos rótulos a fim de evitar multas e dores de cabeça à direção da empresa.
           
À medida que uma foto e uma gravação podem ser usadas para provar fatos negados pela gerência, vincular de antemão imagens e conversas ao segredo industrial coíbe também a chance de registrar com um celular as situações perigosas que se materializam no cotidiano do trabalho, de provar formas de assédio moral e de mostrar os abusos relativos às metas estabelecidas. Ao impedir registros não autorizados dos ambientes de trabalho, a preocupação central é a de evitar que os funcionários se sirvam deles num processo judicial contra os empregadores. Acrescente a possibilidade de o empregado ter que pagar uma indenização, caso seja condenado, e verá que será ainda mais difícil encontrar quem se arrisque a levantar a própria voz.
           
Por outro lado, quando a ofensa atinge a esfera moral ou existencial do trabalhador, como no caso de um ato de discriminação ou assédio, a legislação aprovada é bem mais complacente e busca reduzir o valor das indenizações. Neste caso, as quantias são fixadas tendo como base o último salário contratual do ofendido, num entendimento sinistro pelo qual a ofensa sofrida vale menos para quem ganha menos. Imagine agora o caso de um trabalhador que, em função do assédio moral, entrou em depressão ou desenvolveu doenças psicossomáticas cujo tratamento demanda custos elevados e não tem prazo para se encerrar. Apesar de psíquica e fisicamente fragilizado, e sem perspectivas reais de recuperação total da saúde, a indenização máxima que pode esperar receber será de até 50 vezes o seu salário contratual, o que, quase certamente, não cobrirá os custos dos tratamentos típicos dos casos aos quais estamos nos referindo.
           
Para termos uma ideia da diferença no valor das indenizações pagas antes e depois da reforma, vale a pena lançarmos mão de um exemplo concreto. Num artigo do desembargador do Trabalho, Manoel Carlos Toledo Filho, encontramos o caso de Fábio José, um jovem de 25 anos que caiu de um andaime quando trabalhava a cerca de dez metros do solo em condições mínimas de segurança. Fábio sobreviveu à queda que lhe ocasionou traumatismo crânio-encefálico, paralisia facial e perda da funcionalidade de todos os seus músculos a ponto de torná-lo completamente dependente de outra pessoa até para realizar tarefas banais como se alimentar, tomar banho, deitar e levantar da cama. A indenização à qual ele teve direito foi de R$ 160.000,00. Caso fossem aplicados os critérios previstos pela reforma trabalhista, na melhor das hipóteses, Fábio José não ganharia mais do que R$ 64.000,00, ou seja, 40% do valor que recebeu. Uma quantia que, de um lado, vai piorar a sua condição e, de outro, desestimula ainda mais os investimentos em segurança que seriam necessários.[4]
           
Se isso não bastasse, a legislação prevê que, ao apreciar o pedido de indenização, o juiz considere como atenuantes:

ü  A natureza do bem jurídico tutelado;

ü  A intensidade do sofrimento e da humilhação;


ü  A possibilidade de reparação física e psicológica;

ü  Os reflexos pessoais ou sociais da ação ou da omissão;

ü  A extensão e a duração dos efeitos da ofensa;

ü  As condições em que ocorreu a ofensa ou o prejuízo moral;

ü  O grau de dolo ou de culpa;
ü  A ocorrência de retratação espontânea;
ü  O esforço efetivo para minimizar a ofensa;
ü  O perdão tácito ou expresso [da vítima]
ü  A situação social e econômica das partes envolvidas;
ü  O grau de publicidade da ofensa.

Além de reduzir ainda mais o valor da indenização, a complacência da reforma com as empresas chega a ponto de permitir que o silêncio da vítima não seja interpretado como forma de suportar o ocorrido para não correr o risco de perder o emprego, e sim como uma espécie de “perdão tácito” e que um simples pedido de desculpas do agressor seja suficiente para reduzir o dano infligido. Agora, se, num momento de raiva, o trabalhador vier a ofender um superior hierárquico, saiba ele que, além de perder o emprego, poderá ser processado por danos morais e pagar uma indenização de até 50 salários contratuais da pessoa ofendida.
           
O futuro que esta norma permite projetar não é nada bom. De um lado, teremos um ambiente de trabalho que se degrada à medida que a precarização e a terceirização ganham terreno e não há mecanismos que obriguem os empresários a eliminar os riscos. De outro, a lei aprisiona numa camisa de força a ação sindical que pressiona publicamente por mudanças, usa a ameaça de um processo por danos extrapatrimoniais para impedir que o trabalhador diga o que pensa ou desabafe ao não aceitar o que considera injusto e, quando a vítima é o próprio funcionário, sobram motivos para reduzir o valor das indenizações. Além de explorado, o empregado deve permanecer calado por medo que suas palavras sejam usadas contra ele.
           
A maneira como o trabalho insalubre é tratado no texto da reforma autoriza o lucro a destruir a vida. A Constituição brasileira trata como um dever o esforço de reduzir os riscos do trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança que, por sua vez, buscam conter a exposição dos trabalhadores com medidas, prioritariamente, coletivas. Só há um problema: investir em segurança é visto como sinônimo de encolher os resultados financeiros. Então, como driblar estas obrigações com realidades que legalizam o que parece absurdo?
           
A reforma trabalhista responde a este desafio fazendo com que o grau de insalubridade deixe de ser um assunto para técnicos qualificados e seja definido numa negociação direta entre patrões e empregados. E, o que é pior, as decisões tomadas neste campo passarão a valer sem que haja controles, fiscalizações ou possíveis questionamentos por parte do Estado.
           
A fim de reduzir o montante das contribuições pagas à previdência social, pode ser que os patrões assinem com os empregados acordos que reduzem o grau de insalubridade em troca, por exemplo, de um abono que, inicialmente, pode ser um pouco superior ao adicional que vinha sendo recebido, mas que, ao reduzir os dispêndios com a previdência social, será bem mais compensador para os empresários.
           
A primeira vista, esta pode parecer uma troca vantajosa para os funcionários que receberiam mais para se submeterem ao mesmo risco. Na verdade, ela esconde problemas mortais. Além de não reduzir os agentes agressivos e impedir que os empregados tenham acesso aos benefícios previdenciários previstos para quem atua em ambientes insalubres, a falta de estabilidade no emprego fará com que a rotatividade se encarregue de substituir os trabalhadores atuais por outros que perderão progressivamente este benefício. Ou seja, não só continuariam submetidos a condições de trabalho que ameaçam a saúde como deixariam de receber o adicional de insalubridade que vinha sendo pago sob outro nome. É verdade que nada impede a qualquer trabalhador de abrir um processo na justiça para pleitear uma indenização em função de uma doença do trabalho, mas a própria reforma se encarrega de desencorajá-lo de duas maneiras: 1. Obrigando-o a pagar os custos da perícia que vier a negar o pedido; 2. A desembolsar uma quantia que varia de 5% a 15% sobre a diferença entre as verbas pleiteadas e as que foram concedidas na ação judicial.[5]
           
Mas isso não é tudo. Ao comentar a reforma trabalhista, poucos lembram que os limites de tolerância dos agentes agressivos estabelecidos em lei foram definidos tendo como base uma jornada de 8 horas interrompida por intervalos que visam permitir ao corpo de se recuperar minimamente antes de prosseguir as tarefas previstas naquelas condições. O texto aprovado permite que a negociação entre patrões e empregados aumente a jornada de 8 para 12 horas diárias em ambientes insalubres dispensando qualquer permissão dos órgãos competentes e podendo reduzir os intervalos, o que implica numa ulterior exposição do trabalhador aos agentes agressivos sem nenhuma medida que amplie a sua proteção. Ou seja, no lugar de proteger o empregado, a nova legislação o expõe ainda mais ao risco.
           
Esta possibilidade se torna gritante no caso das mulheres grávidas e das que estão amamentando. Antes da reforma, era vetado a elas desempenhar qualquer trabalho em condições insalubres. Agora, esta proibição taxativa vale apenas no caso dos ambientes com nível máximo de insalubridade. Nos de grau médio e baixo, a mulher grávida ou lactante vai continuar atuando a não ser que um médico de sua confiança solicite o afastamento através de um atestado. Diante do que dissemos até agora, as perguntas surgem espontaneamente:

À medida que o grau de insalubridade vai ser definido através de uma negociação que dispensa laudos técnicos, quantos ambientes de grau máximo se tornarão de nível médio ou até mesmo mínimo? Sendo assim, quantas mulheres grávidas e lactantes irão trabalhar neles acreditando que a exposição aos agentes agressivos não prejudica a sua saúde? Quantas mulheres sabem que as mudanças que estão ocorrendo no seu corpo em função da gravidez proporcionam uma maior exposição ao risco para elas e seus bebês?

ü  Para os parâmetros da CLT, um ambiente de trabalho é considerado insalubre por apresentar agentes nocivos acima dos limites de tolerância dos seres humanos. Na literatura médica, há estudos relacionando malformações e natimortalidades provocadas por exposição de mulheres grávidas a agentes agressivos e provando que parte deles passam para as crianças através do leite materno. Como é possível afirmar que num ambiente insalubre há um grau de exposição considerado “seguro”?

ü  A reforma trabalhista condiciona o direito da mulher preservar a saúde à apresentação de um atestado que solicita o seu afastamento. É raro encontrarmos médicos que conhecem os riscos dos locais de trabalho e sabem relacioná-los ao processo de adoecimento e são mais raros ainda aqueles que perguntam detalhes do trabalho na hora de elaborar o diagnóstico dos pacientes. Então, quem vai assinar um atestado relativo a algo que desconhece total ou parcialmente? Ainda que tenha algumas informações, que chance tem um médico de entender a condição real de um ambiente de trabalho para saber se a gestante e a lactante podem ou não ser expostas? No caso de o profissional procurado ser o médico da empresa, ele irá determinar o afastamento de funcionárias sabendo que sofrerá pressões por parte de quem o contratou? Empresários e gerentes aceitarão de bom grado esses atestados que apontam a nocividade dos processos produtivos?

ü  Ao sofrerem pressões da chefia, as mulheres grávidas ou lactantes optarão por se afastarem do trabalho, sabendo que correm o risco de perder o emprego após o término da licença maternidade? Ou, cientes das dificuldades de serem contratadas por outra empresa, continuarão trabalhando em condições insalubres?


            São apenas perguntas, mas a intuição diz que as respostas colocarão em segundo plano as preocupações com a vida.
           
A não eliminação da insalubridade e o não pagamento dos adicionais correspondentes ganham fortes aliados na contratação de trabalhadores autônomos, intermitentes ou por tempo determinado. Em relação aos primeiros, o fato de seu contrato de trabalho afastar a qualidade de empregados da empresa, mesmo prevendo a exclusividade de sua prestação de serviços de forma contínua ou não, faz com que eles não possam se queixar das condições em que irão atuar. De fato, assinar um contrato como pessoa jurídica inclui que o trabalho seja realizado num determinado ambiente com um grau de risco definido, cabendo ao próprio trabalhador providenciar o que, no seu entender, reduz ou anula os efeitos nocivos. Em outras palavras, se ele quiser ganhar dinheiro, então que se adapte, se previna como e quanto puder, sem fazer alarde e sem exigir nada do empregador que paga seus serviços para atuar naquele ambiente, do jeitinho em que se apresenta.
           
No caso do trabalho intermitente e por prazo determinado, a rotatividade se encarregará de apagar os registros das doenças profissionais. À medida que o coletivo de trabalhadores sofre alterações constantes, é impossível levantar a relação doença-trabalho e, sem os registros dos adoecimentos causados por agentes nocivos, a única verdade que resta é a que será apresentada pelas empresas e por estatísticas oficiais cada vez mais obscuras e precárias. Queremos ressaltar que esta não é uma questão marginal à medida que a agressão à saúde é um dos aspectos centrais pelos quais o trabalhador coletivo toma consciência da sua exploração e faz da indignação resultante o motor da luta por mudanças. Apagar esta possibilidade é parte essencial das condições que ampliam os horizontes da submissão das necessidades humanas às demandas do lucro e adiam o surgimento de respostas coletivas.
           
Outra pérola da reforma trabalhista cujas implicações passaram quase despercebidas está na determinação pela qual o “empregador deverá instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes. O empregado deve assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo empregador”.[6] Em outras palavras, se o trabalhador conhece os riscos e perigos do trabalho, bem como as medidas para evitar acidentes e adoecimentos, ele está consciente de que precisa cumprir a risca todas as regras e, caso não o faça, a responsabilidade pelo que vier a ocorrer não poderá ser atribuída ao empregador que tiver cumprido a sua parte, mas somente a quem violou as prescrições recebidas.
           
Longe de obrigar os patrões a investirem na eliminação dos riscos, a lei amplia o espaço para eximi-los de suas responsabilidades nos acidentes e doenças profissionais pelo simples fato de terem instruídos os funcionários a se protegerem. De um lado, o texto aprovado permite dizer que um empregador pode manter em operação processos de trabalho e maquinários que matam, adoecem e amputam trabalhadores sem sofrer restrições ou obrigações que imponham mudanças efetivas para preservar a saúde e a segurança dos empregados. De outro, bastará ele provar que, em algum momento, a vítima não levou em consideração as precauções ensinadas para que o trabalhador se sinta culpado e seja de fato responsabilizado pelo ocorrido.
           
O show de horrores desta postura mostra a sua crueldade quando visualizamos elementos simples do cotidiano do trabalho:

1.    Inúmeros estudos mostram que o período de atenção máxima de um ser humano comum durante uma jornada de trabalho de 8 horas, não passa de 30 minutos e, no restante do tempo o indivíduo atua numa espécie de piloto automático em que o grau de vigilância varia a depender dos problemas que aparecem. As coisas tendem a piorar nos turnos de revezamento. Além de o cérebro humano não funcionar à noite do jeito que ele é capaz de fazer durante o dia, situações de fadiga crônica elevam a exposição ao risco frente ao qual a barreira das precauções tem um efeito extremamente limitado.

2.    Há muito tempo, o estresse se tornou um elemento gerencial de primeira ordem para elevar a produtividade e atingir metas que desafiam os trabalhadores. Para forçá-los a elevar o ritmo, as avaliações de desempenho constituem uma peça-chave tanto da remuneração como das condições para que continuem empregados. Neste contexto, os funcionários costumam se deparar com um dilema insolúvel: cumprir as normas e não dar conta das demandas dos empregadores ou descumpri-las como condição necessária para alcançar as metas exigidas e evitar atritos com a chefia? Em ambos os casos, os trabalhadores ficam entre o prego e o martelo numa situação que se agrava à medida que a própria reforma prevê que a negociação crie uma remuneração por produtividade, o que tende a estimular ainda mais o descumprimento das precauções como condição necessária para aumentar o salário.

3.    Entre os momentos que elevam as chances de erro, encontramos as chantagens e as situações de assédio. Ao desestabilizar emocionalmente o trabalhador, elas causam tensão, irritação, dificuldade de concentração, baixa autoestima, um declínio do sentimento de competência, distúrbios da memória e hesitação na hora de tomar decisões, além de uma relação tensa com colegas e superiores. Um panorama que transforma as precauções em algo ainda mais difícil de ser respeitado.

4.    Mais de 70% dos acidentes ocorrem entre o final da jornada de trabalho de oito horas e o seu prolongamento nas horas extras à medida que o cansaço reduz o nível de atenção. Mas, como vimos acima, a reforma trabalhista opta por permitir a extensão da jornada de trabalho até 12 horas diárias. Ou seja, ao mesmo tempo em que faz recair sobre o trabalhador a responsabilidade de adotar as precauções ensinadas, piora as condições materiais em que esta obrigação vai se concretizar. Se errar é humano, trabalhar em condições que agravam as chances de erro é dar sopa ao azar.
A realidade que acabamos de esboçar revela que o treinamento recebido e o conhecimento das precauções têm uma eficácia ainda mais reduzida quando constituem a única barreira contra doenças e acidentes. O comportamento do trabalhador, de fato, nunca depende exclusivamente da sua vontade, mas é sempre condicionado pelas circunstâncias. Ou seja, a aplicação das prescrições ensinadas depende de elementos imprevisíveis que cercam o trabalho real e demandam ajustes constantes, reduzindo a chance de as normas serem praticadas em sua integralidade. Cega diante da elevação do risco, a reforma trabalhista desconsidera totalmente que a ênfase nas precauções oculta os aspectos do trabalho que precisam ser mudados para preservar a saúde dos trabalhadores e leva a crer que a sua violação nunca ocorre pela pressão das metas e dos objetivos empresariais vinculados aos resultados financeiros.

Apesar de a literatura científica provar exatamente o contrário, os legisladores criaram uma norma que pressupõe um trabalhador perfeito que, treinado e esclarecido, não tem como errar. Trata-se de alguém que não se cansa, não sofre alterações de humor, não é influenciado por nada, pode respeitar as precauções recomendadas em qualquer situação, dispõe sempre do tempo necessário para pensar antes de agir e toma decisões contando com a compreensão irrestrita dos superiores hierárquicos mesmo quando respeitar as normas significa reduzir a produção. Um ser acima da condição humana, que só existe na imaginação de quem pensa orientado pelo lucro a qualquer preço e que, se levasse a sério o respeito rigoroso das normas, não conseguiria emprego nas empresas do nosso país...

O processo de permanente destruição e reconstrução da classe trabalhadora para moldá-la de acordo com as necessidades da acumulação incorpora também a possibilidade de acordos individuais escritos, tácitos ou de palavra, que colocam o empregado frente a frente com o patrão, em aberta concorrência com outros que estão dispostos a fazer o mesmo. Basta pouco para percebermos que, em caso de desentendimento, a empresa sempre sairá vencedora, à medida que, de um lado, é a palavra dela contra a de um funcionário que teme perder o emprego e, de outro, que ela conseguirá com certa facilidade os substitutos de que precisa.
           
Mas isso não é tudo. O processo de individualização da relação de trabalho vai ganhar corpo entre os funcionários diretamente contratados com as possibilidades de remuneração por produtividade que serão abertas pelas negociações entre trabalhadores e empresas e fortalecerão o desempenho pessoal como fator de mérito e remuneração. Tido pelos trabalhadores como uma forma justa de retribuir o esforço pessoal, o salário por produtividade vai aumentar a perda da percepção coletiva de uma causa comum pela qual lutar além de elevar a competição entre os empregados e colocar o aumento dos ordenados na estrita dependência de quanto cada um vai produzir. Enfim, o que serve como uma luva para retribuir o esforço individual vai minar as possibilidades de resistência coletiva e de ação enquanto classe trabalhadora.
Os defensores da reforma não titubeiam em afirmar que, ao ampliar as possibilidades de contrato, a reforma irá gerar muitos empregos, melhorará a competitividade das empresas, ampliará os investimentos e aumentará o poder de negociação dos sindicatos. Ou seja, a partir de novembro, devemos assistir à melhora constante da renda que vem do trabalho e, de consequência, a uma redução das desigualdades sociais. Diante do que dissemos acima, este cenário de conto de fadas não é só improvável como as mudanças que se produzirão na sociedade caminharão em sentido oposto. E, aqui, há algo a mais que precisa ser resgatado.
           
Em primeiro lugar, para manter e aumentar o número de postos sem piorar a renda dos trabalhadores, seria necessário ter instrumentos que garantem o emprego de quem já tem um e reduzir a jornada sem encolher salários e direitos. Na contramão desta realidade elementar, a reforma trabalhista possibilita um aumento das horas trabalhadas até nas situações em que era proibido fazer isso antes,[7] autoriza a redução e a supressão de intervalos, permite negociar os períodos de férias, medidas que contribuem para reduzir o número de vagas existentes ou a serem abertas.
           
 Por outro lado, os novos contratos permitem trocar um trabalhador que recebe R$ 2.000,00 por dois de R$ 1000,00, às vezes sem direito a descanso semanal remunerado, adicionais de insalubridade e aos benefícios previstos nos acordos coletivos negociados pelos sindicatos.  O emprego vai aumentar, mas, ao buscar a competitividade da economia com base na precarização e sem mexer nas margens de lucro das empresas, a participação dos salários na riqueza nacional tenderá a cair com efeitos negativos sobre o consumo das famílias, os investimentos e a arrecadação do Estado.
           
Em relação aos sindicatos, percebemos um processo de desestruturação do seu poder de barganha, à medida que parte de sua base atual será substituída por prestadores de serviços e que a sustentação financeira vai se tornar inviável em prazos relativamente curtos. Além disso, partes importantes dos acordos coletivos assinados podem ser negadas em negociações diretas entre patrões e trabalhadores e a não prorrogação automática do contrato além da data-base cria uma situação extremamente favorável à perda de direitos. A presença dos sindicatos também foi excluída das negociações que envolvem demissão coletiva e homologações e uma comissão interna vai mediar os conflitos nos locais de trabalho, credenciando-se como interlocutor que os empresários manipularão para ser ainda mais flexível e generoso em relação às suas demandas.
           
Finalizando, queremos apresentar um dado que pode servir de parâmetro para avaliar o futuro da concentração da renda que a reforma trabalhista ajudará a consolidar. No dia 25 de setembro, a Oxfam Brasil lançou um relatório sobre a desigualdade no país, intitulado “A distância que nos une”. De acordo com os cálculos desta organização, atualmente, os seis maiores bilionários têm a mesma riqueza dos 100 milhões de brasileiros mais pobres[8]. Considerando que o país tem aproximadamente 207 milhões de habitantes, é como dizer que seis pessoas concentram a mesma renda de metade da população brasileira. A título de reflexão, uma pergunta se faz necessária: graças às mudanças introduzidas pela reforma trabalhista, daqui a 10 anos, quantos milhões de brasileiros irão aumentar o atual exército de pobres cuja renda equivale à dos 6 bilionários mais ricos? Neste momento, é claro que não temos a resposta, mas as reflexões que apresentamos dizem que não serão poucos...
           
Queremos encerrar a nossa análise com uma reflexão. Em 1880, a partir do estudo sobre a situação da classe operária na Inglaterra, Marx redigiu e publicou a Enquete Operária. As 101 perguntas que constam do formulário dirigido aos trabalhadores da França buscam entender a sua realidade para esboçar caminhos de ação que fortaleçam as organizações de luta e resistência liquidadas após a repressão da Comuna de Paris, em 1871. Ao desvendar a realidade e a opinião que os trabalhadores têm sobre o trabalho e a exploração, a Enquete oferece instrumentos para que a reconstrução do passado ilumine o presente e a recuperação do sofrimento diário leve o operário a visualizar a própria condição, a comparar e estabelecer relações com outras situações, a ir além das preocupações individuais e se sinta sujeito de um diálogo em construção.
            No momento em que escrevemos, o silêncio, a paralisia, a submissão e até mesmo a adesão entusiasmada de alguns trabalhadores às demandas empresariais são elementos que assustam pela passividade e a incapacidade de visualizar o avanço da exploração à qual a reforma trabalhista imprime as marcas da legalidade.
           
Por que os trabalhadores se dispõem a perder completamente a sua dignidade sem esboçar reações consistentes? Que medos se impõem de forma tão poderosa a ponto de apagar a rebeldia, inviabilizar a resistência e tornar as pessoas cegas diante de mudanças que prometem mais sofrimento? Por que a classe não reage?
           
São perguntas ainda sem respostas consistentes. O momento exige uma inserção que permite ouvir e conhecer de perto os trabalhadores, seu cotidiano, suas expectativas e visões de mundo, as ideias que fomentam a sua submissão, os elementos do processo que construiu a realidade com a qual nos deparamos e os sinais de inquietação que emergem do esforço de se moldar às exigências empresariais. Conhecer o terreno em que se movimenta o senso comum da classe é um passo essencial para semear dúvidas na sua visão de mundo, abrir as portas da indignação e dar vida aos primeiros passos de uma reação que mostre a sua inconformidade com a exploração.

           
Brasil, 15 de outubro de 2017




[1] A reforma trabalhista está legalmente regulamentada na Lei 13.467 publicada no Diário Oficial da União em 14-07-2017 e entra em vigor 120 dias após sua publicação.
[2] O dado encontra-se na página 16 do relatório produzido pelo Grupo de Trabalho sobre a reforma trabalhista do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da UNICAMP, Campinas, 2017. Disponível em http://www.cesit.net.br/wp-content/uploads/2017/06/Dossie-14set2017.pdf
[3] Em grandes linhas, podemos dizer que a legislação brasileira divide os danos passíveis de indenização em dois blocos: os que são mensuráveis, como é o caso dos prejuízos causados ao patrimônio de uma empresa ou de uma pessoa; e os que não são objetivamente mensuráveis, como os danos morais (que representam uma violação da dignidade, da honra, da imagem, de aspectos morais, existenciais e psicológicos, causando abalos ao estado emocional e ao bem-estar das vítimas); os danos estéticos (que atingem a integridade física com deformidades e lesões de vários tipos); e os danos existenciais (que ferem a rotina e os projetos de vida de uma pessoa, impossibilitando-a de desfrutar de atividades do seu cotidiano). A reforma trabalhista chamou de extrapatrimoniais, os danos que não são objetivamente mensuráveis. No caso de uma empresa, são os que atingem sua imagem, marca, nome, etc. Em se tratando de trabalhadores, são os danos morais, estéticos e existenciais, cujas indenizações dependiam exclusivamente da avaliação do juiz sem que houvesse nenhum limite pré-estabelecido.
[4] Em Manoel Carlos Toledo Filho, O preço da dor: Isacio Aquino, Fábio José e a Reforma Trabalhista Brasileira, disponível em: https://www.google.com.br/url?sa=t&source=web&rct=j&url=https://www.anamatra.org.br/attachments/article/25281/ARTIGO%2520DANO%2520EXTRAPATRIMONIAL.pdf&ved=0ahUKEwiw0sjq8O3WAhWIiZAKHaIzAYwQFggwMAE&usg=AOvVaw0MOEsk_O78P3phfbyOLhrw  Acesso em 13-10-2017.
[5] Um exemplo vai nos ajudar a entender este aspecto. De acordo com o texto aprovado, caso o trabalhador tenha aberto uma ação para receber uma indenização de R$ 100.000,00 em função de uma doença contraída pelas condições insalubres em que atuava e o desfecho do processo obrigue a empresa a pagar apenas R$ 20.000,00, caberá a ele pagar honorários sobre a diferença de R$ 80.000,00 não concedida no processo, o que equivale a uma quantia que pode variar entre R$ 4.000,00 e R$ 12.000,00. Ou seja, a depender do problema e das chances reais de êxito, um processo de indenização pode acabar sendo um verdadeiro tiro no pé.
[6] O texto encontra-se no Título II, capítulo II A, artigo 75 E, e no parágrafo único que completa esta determinação legal.
[7] Estamos nos referindo aos contratos por tempo parcial onde o aumento da jornada era vetado por se tratar de uma modalidade que devia ser usada apenas em casos excepcionais e às condições de trabalho insalubre
[8] A distância que nos une - Relatório da Oxfam Brasil sobre a desigualdade de renda no país. Disponível em https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/Relatorio_A_distancia_que_nos_une.pdf  Acesso em 09-10-2017.

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