Sabemos que os tempos são difíceis para que quer um mundo melhor sem injustiças ou exploração. Mas é tempo de avaliar os erros, apontar as falhas, ressaltar os acertos e recomeçar. Por isto o NORTE achou oportuno publicar um artigo de alguém que diz que vale a pena ser militante.
Boa leitura e coragem para recomeçar e continuar
Vale a pena um
compromisso militante?
Recebo, de vez em
quando, mensagens de jovens que não conheço, pessoalmente, e pelo Facebook me
perguntam se ainda é possível a luta pelo socialismo. Percebo que têm aversão à
injustiça e simpatia pela causa dos trabalhadores. Mas se interrogam sobre o
sentido da dedicação à militância neste século XXI. Vale a pena? Quais são os
maiores desafios e perigos? Escrevi este texto como se fosse uma mensagem
pessoal de resposta.
Foi há quarenta
anos que me uni à causa do socialismo. Como tantos outros, e após tantos
outros, os anos me levaram a inocência. Não obstante, a esperança nunca
diminuiu. Até hoje, aquela promessa, uma aposta suspensa no tempo, ou um pacto
com o futuro permanece viva. Ainda que a espera seja longa.
Essa escolha
ideológica e, em correspondência, o compromisso militante, não foi incomum
entre os da minha geração, por muitas e variadas razões. Ela definiu a minha
vida, e isso não é dizer pouco. Embora de extração social, relativamente,
privilegiada, para o que era o Brasil dos anos cinquenta, porque filho da
classe média assalariada com ensino médio – uma escolaridade elevada naqueles
tempos – funcionários públicos de uma burocracia que se profissionalizava, em
um Brasil que crescia e se urbanizava, minha vida foi atropelada na madrugada
de um longínquo 25 de Abril, em Lisboa, nos idos de 1974.
Cheguei ao que
poderíamos chamar de vida “consciente” na primeira metade dos anos 70: meia
dúzia de anos depois de 1968, mas antes da ascensão de Reagan e Thatcher;
depois dos Beatles, mas antes dos punks; depois das calças bocas de sino e
antes dos paletós com ombreiras gigantes; em tempo de ver Pelé brilhar na Copa
do México de 1970 e antes de Maradona; quinze anos depois da pílula e dez anos
antes da epidemia da Aids. Se tivesse ficado no Brasil, teria Médici pela
frente, mas estava em Portugal: o 25 de abril despertou a primavera dos meus
dezessete anos. Em resumo: tudo considerado, tive sorte. Nasceu, então, uma fé
de que o improvável era possível. Viver uma situação revolucionária quando
iniciava a vida adulta foi acidental e maravilhoso. Aprendi que era possível.
Descobri o
marxismo na resistência à ditadura de Marcelo Caetano em Portugal e, talvez por
que fosse estrangeiro, me senti atraído, irresistivelmente, pelo
internacionalismo. Associei-me aos “troskos”, à luta pela Quarta Internacional,
uma das tendências mais críticas do marxismo, sofrendo forte influência
política de exilados argentinos. A paixão desse marxismo de juventude foi sendo
polida, e até corrigida sob muitas e variadas influências. Porém, permaneceu.
Essas escolhas levaram a que tenha me engajado na construção da Convergência
Socialista (1978/1994) e, desde então, do Partido Socialista dos Trabalhadores
Unificado. Militei nos últimos quarenta anos sob a mesma bandeira: o
internacionalismo marxista. Sou um trotskista. Isso requer uma explicação.
O termo marxista
surgiu pela primeira vez em 1872, quando a disputa política esquentou dentro da
Primeira Internacional, às vésperas do congresso de Hague. O adjetivo foi
cunhado por Bakunin, em uma carta para a organização de sua fração, com
referências muito mordazes e meio anti-semitas, ao “grupo judeu-teutônico” ou
“marxista”, que “pretendia transformar a Internacional em uma espécie de
Estado”. Parece certo que Marx sempre se sentiu pouco confortável com esse
termo, mesmo quando ele foi utilizado, em correspondências, por militantes do
seu círculo mais próximo, como Lafargue. Não porque considerasse impróprio
identificar a sua tendência como uma corrente diferenciada. Nem porque quisesse
diminuir o seu papel pessoal, mas porque temia as consequências da
personalização de um conjunto de idéias, que pretendia ter ajudado a criar como
um legado à luta e organização independente dos trabalhadores.[1]. Com o tempo, no entanto, depois da morte
de Marx, o estigma se perdeu e os próprios seguidores de Marx passaram a
utilizar o termo, e assim entrou na história. Não temos porque ignorá-lo.
O termo trotskista
foi cunhado, também, pelos inimigos políticos da corrente que Trotsky passou a
animar em meados dos anos vinte do século passado na luta contra a
burocratização do Estado na URSS. Identificar-me como um trotskista quer dizer
que considero que a obra de Trotsky permanece a melhor referência de
continuidade do marxismo para compreender os impasses da luta contra o
capitalismo. Sou, também, um morenista. O que quer dizer que sou um trotskista
latino-americano que considera a obra de Nahuel Moreno uma inspiração: pela
orientação em direção da classe trabalhadora, em especial a classe operária
industrial, e pelo internacionalismo apaixonado.
Aprendi ao longo
destes quarenta anos que a militância é, em primeiro lugar, um compromisso com
um programa e a disposição de lutar pela sua defesa. Um programa é uma visão do
mundo e um projeto. Mas só isso não basta para manter uma militância com
tenacidade. É preciso reencontrar novas forças quando estamos angustiados pelo
esgotamento. É preciso constância, até obstinação. Então, o que fazer?
Bom, se você quer
mudar o mundo saiba que vai ser preciso estar disposto a mudar a si mesmo. A
primeira qualidade de um socialista é a sua integridade moral. A decadência
vergonhosa da direção e, também, do aparelho profissional do PT confirma que o
mau caráter, a duplicidade e, portanto, a desonestidade são o endereço final da
adaptação política. Não é possível uma vida decente sem indignação contra a
exploração, sem repulsa contra todas as formas de opressão, sem revolta contra
a dominação. É preciso honestidade de propósitos, inteireza de princípios,
retidão de caráter, amor pela justiça, e sobriedade de conduta.
Acontece que a
autotransformação é um processo ininterrupto de educação, tem idas e voltas.
Avançamos e recuamos. Somos vulneráveis às pressões do tempo e do meio em que
estamos inseridos. E as pressões de inércia reacionárias são muito poderosas, e
ninguém está imune. Ninguém é tão firme, tão sólido, tão coerente o tempo todo.
Somos imperfeitos. Temos defeitos, medos, vícios, limites. Prepare-se para
tropeçar. Porque você vai cair, vai trair-se a si próprio, vai se decepcionar
com os outros e, pior ainda, vai se frustrar consigo mesmo. Mais de uma vez vai
ter que encontrar forças para levantar a cabeça, sacudir a poeira e dar a volta
por cima. Vai ter que aprender a ter paciência com os outros.
E, claro, em algum
momento vai se desmoralizar. Vai ter pena de si próprio, e vai pensar em
desistir. Mas a autocompaixão, ou autocomiseração é má conselheira. Todos temos
direito a um pouquinho de autocompaixão, desde que dediquemos o dobro do tema a
aprender a rir de nós mesmos.
O que é preciso é
empatia e compaixão com a dor daqueles que sofrem e lutam. Compaixão é a
capacidade de nos colocarmos no lugar dos outros, e viver os medos e as
esperanças dos trabalhadores, e de todos os oprimidos como se fossem as nossas.
Empatia é a capacidade de sentir o que a maioria está sentindo.
Em segundo lugar,
se você quer mudar o mundo saiba que vai ser preciso agir. Não adianta nada
saber que o mundo é injusto e permanecer imobilizado, e ficar prostrado. A ação
militante exige coragem. Sem a participação nas lutas dos trabalhadores, da
juventude, das massas populares nada vai mudar. A militância é uma oferta, uma
entrega, uma doação, uma aposta. Só que o ativismo não é somente uma doação de
seu entusiasmo, seu tempo, ou até de seu dinheiro.
É uma mudança
completa de atitude. Porque não adianta agir sem pensar. É preciso aprender a
pensar. Para não agir errado. Nada vai mudar se nossa ação é irrefletida. É
preciso compreender como o mundo funciona para transformá-lo. É preciso
observar, estudar, instruir-se, e ponderar. Para poder agir a favor da mudança
que é necessária é preciso estar disposto a aprender. Agir sem pensar é voluntarismo.
Agir sem refletir é uma aventura. Investigar sem agir é diletância. Não se pode
nunca perder a disposição de enfrentar o combate. Sim, a militância é um
combate. Os militantes são os lutadores. Em qualquer luta há a possibilidade de
vitórias e derrotas. É na ação que você recuperará as forças perdidas.
Em terceiro lugar,
se você quer mudar o mundo saiba que vai ser necessário aprender a fazer a
crítica e, mais difícil, a autocrítica. A militância anticapitalista é uma
escola de ação e discussão. Isso exige organização. Aderir a uma organização é
um ato voluntário, mas assim como ela deve garantir direitos, deve exigir
deveres. Nenhuma organização é útil sem disciplina. Uma organização é um
instrumento para aumentar a eficácia da luta. É uma ferramenta indispensável.
Uma organização revolucionária está sempre cercada de inimigos. Ela é uma
ameaça à ordem existente e precisa se proteger. A organização é uma
fraternidade de lutadores. Ela deve ter fronteiras claras, precisa de muralhas.
Se estiver demasiado exposta às pressões reacionárias das classes hostis aos
trabalhadores será destruída. Se estiver demasiado fechada se habituará a agir
dentro de sua “zona de conforto”, e será incapaz de se transformar, de se ligar
aos trabalhadores, e permanecerá marginal na luta de classes.
Devemos ser
conscientes que só serão úteis, estrategicamente, as organizações que
controlamos. Esse é o papel da democracia revolucionária. Sem democracia
interna não há controles. A democracia não é só o direito de fazer críticas. É o
dever de dizer aquilo que pensamos. Mas é preciso aprender a criticar os
outros. Quando criticamos algo que alguém fez, ou defendeu, é obrigatório ter
respeito. E quem exerce o direito da crítica tem, também, o dever de ser capaz
de fazer, quando for apropriado, a autocrítica.
Porque ninguém é
infalível. Só que autocrítica tem que ser voluntária, senão é humilhação.
Ninguém se diminui ao admitir os seus erros. Ao contrário, amadurece, se
agiganta, se fortalece.
Em quarto lugar,
se você quer mudar o mundo saiba que é preciso cultivar o desapego e o
altruísmo. Nunca esquecer que militância socialista digna é abnegação,
desprendimento, desinteresse e afinco. Tudo ao contrário da terrível realidade
que nos cerca. Tudo ao contrário das ideias que são dominantes. Tudo ao
contrário do comportamento individualista que prevalece. A doação que fazemos
ao trabalharmos, voluntariamente, portanto, de graça pelo bem comum nos
engrandece. As pressões sociais valorizam as recompensas imediatas, sejam
materiais ou emocionais. Uma militância séria não irá melhorar a sua vida
econômica. Ao contrário, vai exigir de você a disposição de, quem sabe, até
perder oportunidades de prosperar. Mas tenha atenção porque a corrupção de um
indivíduo não é feita somente com apelos à cobiça de dinheiro. A mesquinhez é,
também, alimentada pelo apetite de sucesso e prestígio. A auréola de glória
pode, também, corromper. O apetite de reconhecimento e a ambição de poder
podem, também, nos perverter. Na militância não podem existir agendas ocultas.
O impulso militante deve estar ao serviço da grandeza do projeto.
Isso significa
aprender a dominar a tentação de vaidade, a arrogância, o orgulho. Finalmente,
é preciso ter a maturidade de aceitar que uma militância séria exige a divisão
de tarefas, porque se impõe a necessidade de especialistas. Mas isso não pode
dar lugar à competição por cargos. Devemos admirar os despojados.
Por último, se
você quer mudar o mundo saiba que a fraternidade deve começar aqui e agora. Há
que valorizar a dimensão subjetiva da vida. Encontrar na luta a força de
valores mais elevados. Eles são simples, porém, insubstituíveis. A
solidariedade, a amizade e o amor. A confiança mútua que só se constrói com o
respeito pela nossa diversidade, e pelo compromisso com a luta pela libertação
dos explorados e oprimidos.
Tudo isso posto,
vem o que é o mais importante. É preciso clareza estratégica, e disciplina
política. Porque não adianta ter razão sozinho. Procure escolher com cuidado a
organização à qual você vai se unir. Cuide de que ela abrace o
internacionalismo que nos ensina que um povo que oprime outro não pode ser
livre. Não é possível uma luta contra um inimigo mundial somente dentro de
fronteiras nacionais. Procure uma organização com um programa marxista, e que
seja coerente entre o que diz e o que faz. Tome cuidado em verificar se ela
reivindica, honesta e humildemente, um legado que vem de longe. Mas atente para
considerar se ela está disposta a tentar se reinventar. Porque novas realidades
exigem novas explicações. Mas cuidado, não se deixe iludir por discursos que
querem “reinventar a roda” e só têm como identidade a necessidade de afirmar
que são o “novo”. Por último, saiba que tudo vai depender, finalmente, da união
e força dos trabalhadores. Procure uma orientação na direção dos trabalhadores
e suas lutas. Eles são os portadores da esperança.
* VALERIO
ARCARY é professor do IF/SP (Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia), e Doutor em História pela USP.
[1] Marx,
talvez, até exagerasse na sua hostilidade em ter quaisquer relações com as
organizações sectárias do seu tempo, e, pela mesma razão, nunca lhe ocorreu a
idéia de construir uma seita “marxista”. Não porque ignorasse que as
organizações com pouca influência pudessem cumprir um papel progressivo em
determinadas situações, afinal, uma tendência política pode ser pequena, ou até
“liliputeana”, por força das circunstâncias, e não pela sua vocação. Mas toda a
preocupação de Marx, durante os anos de vida da Primeira Internacional, o
período mais significativo de sua militância junto ao movimento operário, foi
procurando uma aproximação das organizações de massas dos trabalhadores. A
orientação na direção de uma organização independente de classe governava os
seus esforços, nesse terreno. De qualquer maneira, não seria razoável considerar,
ainda hoje, em vigência, os critérios que orientavam a política de organização
do movimento operário do século passado. Sobre esse tema, vale a pena conferir
um trecho de uma famosa carta de 1871: “A Internacional foi fundada para
substituir as seitas socialistas ou semi-socialistas pela organização real da
classe trabalhadora para a luta. Tanto os primeiros estatutos como o “Manifesto
lnaugural” revelam isso à primeira vista. Por outra parte, a Internacional não
teria podido afirmar-se se a marcha da história não tivesse se encarregado de
acabar com o regime das seitas. O desenvolvimento do regime interno das seitas
socialistas e do movimento dos trabalhadores estão em razão inversa. Quando as
seitas são (historicamente) legítimas é porque a classe trabalhadora ainda não
está madura para um desenvolvimento histónco independente. Assim que ela atinja
essa maturidade todas as seitas são essencialmente reacionárias. No entanto, na
história da Internacional se repetiu o que se dá sempre na história. O caduco
busca uma nova acomodação e tenta fazer-se valer dentro das novas formas
conquistadas. E a história da Internacional tem sido uma luta constante do
Conselho Geral contra as seitas e as tentativas diletantes de se impôr dentro
da Intcrnacional contra o movimento real da classe trabalhadora” (tradução
nossa). MARX, Karl, Carta a Friedrich Bolte de 23 de Novembro de 1871,
in La Internacional, México, Fondo de Cultura Económica, obras
fundamentales, volume 17, 1988, p.614.